Lendo Bandeira, em meio a um coletivo, me entra o contra-progresso aos meus olhos sem vício.
Pela porta de trás do veículo, dois homens, o gordo e o magro, entraram pedindo desculpas e prepararam o terreno:
- Bom dia a todos vocês! Meu nome é Fernando e o dele é Bruno. Somos ex-dependentes de drogas lícitas e ilícitas que, agora (!), estamos revertendo toda a ajuda que nos foi oferecida em prol àqueles que dela necessitam.
Os poemas, como não podia fugir, estavam interessantíssimos e aquele discurso que, duvido eu, alguém tenha entendido por completo, estava me atrapalhando. Belelelém, belelém, o som daquela voz falha estava me distraindo. Não tendo oportunidade porque o magro já contaminava o corredor, fixei meus olhos ao Bandeira e meus ouvidos a propaganda.
- Como puderam perceber, somos pacientes da casa de recuperação São Cristovão que auxilia e ajuda (?) dependentes químicos que não têm como voltar à vida. Eu acordava pra beber e bebia pra dormir. Eu poderia agora estar roubando, furtando, matando fazendo coisas erradas se meus vícios (deles) não fossem tratados.
Sempre aquele velho e gastado argumento: Roubar, matar, até se prostituir. Apesar de que desse último ele recorreria ao primeiro.
- O Bruno também fez parte e está aqui, junto comigo. Estamos vendendo essas humildes canetas que não são nada para vocês, mas são tudo pra quem precisa.
Era já a quinta vez que lia o mesmo verso: Belelém, belelém.
- Nós estamos agora com uma novidade!!! Antes vendíamos uma caneta por apenas um real, agora os senhores podem levar uma caneta com quatro cores: Vermelho, azul, verde e preto MAIS uma caneta com tinta perfumada e com aborrachado para facilitar a escrita por apenas dois reais!!! Ai vocês podem me perguntar: Por que agora são dois reais? E eu posso responder: Passamos 11 anos vendendo uma caneta por um real, como vocês podem ver tudo agora custa dois reais! Em nossas carteiras só têm notas de dois reais! E além do mais, agora são DUAS canetas, uma quatro cores e uma com tinta perfumada por apenas dois reais!
O sino já tocara 10 vezes, ao mesmo tempo em que ouvia o anúncio da Polishop, as baladas eram insistentes. Ouvia tudo dobrado, tudo por dois!
-Brunooo, o rapaz ali quer ver como que são as canetas de quatro cores. Você tem ai?
-Opa, tenho sim.
[O mesmo magro que infestara o corredor e não deixava eu ler, já tinha derramado suas canetas perfumadas no colo de todos que estavam sentados. Sorte, estava de pé]
O magro só servia se o seu amigo o assegurava. Parecia um furão entre o corredor. Mostrou, encarou e vendeu! Mais dois reais à casa de recuperação São Cristovão!
O discurso parou e os sinos também. Sentei ao lado do último comprador e ouvi os dois perdidos da rehab conversando:
- Porra, falei pra você que num é assim... Desse jeito não dá!
- Ah, desculpa ai então.
[Enquanto isso as canetas eram testadas em embalagens de cigarro]
Cinco pontos depois, 20 canetas vendidas, os soldados de Jesus drogado saíram recuperados.
-Obrigado seu motorista.